terça-feira, 11 de maio de 2010

Conto de Autor


Excerto de “O tesouro” de Eça de Queiróz

Agora eram dele, só dele, as três chaves do cofre!... E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem, sob as neves de Dezembro, alguns ossos sem nome, ele seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos como? Como devem morrer os de Medranhos - a pelejar contra o Turco!
Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois foi examinar a capacidade dos alforges - e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão!
Com que delícia se sentou na relva, com as pernas abertas, e entre elas a ave loura, que rescendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guanes fora bom mordomo - nem esquecera azeitonas. Mas porque trouxera ele, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.
Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia - destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu, porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.
- De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar os alforges.

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